"Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada;
mas quando não desejo contar nada, faço poesia."
Manoel de Barros - Livro Sobre Nada

"O momento em que, hipoteticamente, você sente que está andando nu pela rua, expondo demais o coração, a alma e tudo o que existe lá dentro, mostrando demais de si mesmo. Esse é o momento em que, talvez, você esteja começando a acertar. "
Neil Gaiman - O Discurso "Faça Boa Arte"

"...eso es lo que siento yo en este instante fecundo..."
Violeta Parra - Volver a Los Diecisiete

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

The Living City VIII-farewell


A balaustrada puída e rota da rua Sapucaí separa o plano do abismo.
Separa também o inimaginável do inexorável.
Ela prevalece sobre o caos lá embaixo, sobre os rios encaixotados, sobre o asfalto quente, sobre o diesel inalado à força e a selva de prédios grudados em conjunção quase carnal de suas empenas cegas.
Justo quando a cidade se aprontava para o mundo, os olhos verdes se fechavam para nunca mais.
O que era medo, virou fato.
Naquele voltar para casa mecânico e braçal, o choro chegou, tardio e doído por uma Floresta que se despovoava de suas maiores importâncias.
Até breve, Pai...

(acervo pessoal)



sábado, 15 de outubro de 2016

O gosto da palavra


Quando digo
frrruta!
sinto na boca
um gosto de pera.
Eu me alimento
de palavras...

(por Joana Lessa Campos)

(Em Ouro Preto. Acervo pessoal)



quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Ela


Ela tinha um quê de tristeza
e olhar de crepúsculo,
daqueles lindos que só
minha cidade consegue gerar...

Quando sorria era
alvorada pura.
Amanhecer
grama e orvalho
pisados sem medo
com os pés nus
e de mãos dadas
em silêncio e cumplicidade.

Carregava no coração o sentimento
de só viver um dia depois do outro...

(Por do sol, BH-arquivo pessoal)


terça-feira, 30 de agosto de 2016

Richter 9.0


Tectônico
o coração dispara
amolece a guarda
borra o desenho feito à mão
entorta a caligrafia do poema
e endireita o caminho para o sol.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Butterflies and Zebras


No estio da alma,
quando não se encontra tempo
nem para ser triste ou cultivar
o que de belo tem o blue
passa longe a poesia

ou quase...

nas grimpas de um bairro
na jam session inesperada
nas vozes roucas
no sorriso aberto de
quem passa ao largo e
ao alcance dos suspiros

no que há de cósmico
ou terreno
na conjunção de planetas
e de poetas
a poesia brota forte e
inesperada da palma
de minha testa

"Fly on little wing
Take anything you want from me"

#LittleWing


quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Quase


Foi na manhã
ensolarada
daquele dia
em que mais
se procurava
que ele a encontrou
na lembrança
de seu colo
de seu cheiro
de seu toque
de seu nome
e na certeza
de que quase 
foram feitos 
um para o outro.


terça-feira, 2 de agosto de 2016

Na crise


Existe?
Poesia na crise?
Não costuro palavras
nem construo pensamentos.
Ziguezagueio com os olhos
a balaustrada cinza do viaduto
de sempre...

Existe!
Existe sim,
mas o que quero mesmo é colo!
Tudo é cada vez mais fugaz
e a vida é um sopro.
Somos pó.

Tá osso! Todos dizem...
Tava osso! Digo eu...
Chegamos no cerne da questão.
Questão de tutano.
Quem tem mais,
chega ao dia seguinte.

Chego aos 45 do 1º tempo
Navego longe, mesmo sem vento...
E fulaninha?
Linda como sempre: S2 pra ela...

Existe poesia na crise?
Existe?
Quem não vê, corre...
Quem não crê, morre...

E ciclana? Melhor nem lembrar.
O que passou, foi-se...
mas se ela quisesse, eu ia.
Ninguém é 100% resolvido.
Pilha errada e neuras
movem o mundo...

Perdi a hora hoje cedo.
Peguei táxi.
Almocei pouco.
Falei com a filha e vi que
saudade só dói quando respiro.

Existe poesia na crise?
Não costuro palavra
com pensamento.
Duplipenso...

Bora trabalhar...













segunda-feira, 27 de junho de 2016

Far away, so close


Para deixá-la de vez
no passado longínquo
afastou-se.

Voltou (se) para o interior
pensando que assim
a vida seria tranquila.

Largou na capital
todos os beijos e
demais lembranças boas.
Deletou o que havia
de mensagens, "likes"
e referências.

Parou de respirá-la mas
no final do sexto dia:
"Damn...!"
Sonhou com ela novamente.

Há coisas que o coração
não deixa que apaguem.
Saudade é uma.
Amor,
nem se fala.

(acervo pessoal)

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Inverno


Hoje,
quando o inverno chegou,
a lua cheia era alta e branca
num céu de vidro sem nuvens.

O ar frio de junho por aqui
sempre tem cheiro de
amor recém descoberto,
de expectativa
e de abraços infinitos.

Isso é registro de minha memória pulmonar.

As faces coradas pelo fogo das fogueiras
e pelos corações em chamas.
Frio na barriga,
na ponta do nariz
e nos dedos descobertos
para o carinho inevitável.

Frio
até chegar o primeiro beijo.


(20-6-16: acervo pessoal)



sexta-feira, 10 de junho de 2016

The Living City VII


Sentia um incômodo, um desconforto diferente naquela via emocional que conectava coração e cérebro. O meio desse caminho era, não por acaso da natureza, a garganta, que naquela hora parecia tampada por uma bola de basquete suja de terra.
Ainda assim ouvia com interesse as palavras do professor sobre a cidade e seus primórdios e logo que acabou a aula saiu voando da Cidade Jardim com destino à Floresta.
Coisas de BH...
Flutuou calmo pela São Paulo com o Leitão encaixotado, ruidoso e fedorento lá debaixo do asfalto preto, imerso que estava em pensamentos e especulações inúteis.
Tentava desvencilhar-se dos preconceitos de praxe, principalmente os auto-infringidos, que atormentavam sua vida e o faziam pensar novamente em voltar para a terapia.
Acordou do transe entrando pelo viaduto de sempre. Conhecia aquelas calçadas como sua própria alma e as percorria cumprimentando buraco por buraco.
Ignorou os arcos dessa vez.
Não quis olhar para eles para não invocar mais passado.
Não tinha tempo para isso.
Precisava de caminhos novos, amores novos, sapatos novos.
Virou Sapucaí e sumiu na noite escura.


terça-feira, 7 de junho de 2016

E la nave va...


Vida que segue
Vida que anda
Vida que flui.

Tive um sonho essa noite
Em que dizia para alguém
Pelo whatsapp:
"O acaso é, na verdade, apenas
uma formalidade necessária,
quase uma burocracia da vida
para que os destinos se cumpram."

Vida engraçada
Vida que surpreende.

E la nave va...






quarta-feira, 1 de junho de 2016

De surpresa


Ela chegou  de surpresa
como chuva forte e trovoadas
em pleno mês de junho
na cidade que me vê crescer.

Trouxe vento,
trouxe frio,
aroma de terra e asfalto
molhados.

Foi-se embora e deixou
céu limpo
sol brilhante
atmosfera lavada
alma aquecida
e a minha grama mais verde
que a do vizinho.


sexta-feira, 20 de maio de 2016

The Living City VI


Saiu do trabalho com a noite já formada: lua cheia e alta no céu, muita gente nas ruas e o trânsito lento de sempre.
Resolveu que caminharia até sua casa pois assim chegaria mais rápido. Tateou no bolso da camisa um último tablete de goma de mascar e calculou que o tempo de caminhada seria o mesmo que levaria para desaparecer o sabor de hortelã em sua boca.
Pegou o telefone e ligou para a filha para saber novidades. Uma onda de conforto e satisfação preencheu os buracos de sua alma quando ouviu sua voz.
Desligou e, automático, passou o dedo pela tela à procura de alguém cujo nome ficava próximo ao da filha na agenda iluminada. Hesitou por um segundo e nada fez. Achou prudente esperar mais um pouco pois ainda havia poeira de uma vida para baixar.
Seguiu caminhando e mascando. Viu aparecerem lentamente as criaturas da noite e já sentia o peso do sereno daquele fim de maio.
Caminhava, mascava e cantarolava clássicos. Mordeu a língua duas vezes.
Entrou pelo viaduto e imaginou acordes nas harpas gigantes que, em dias normais se disfarçam de arcos de concreto e estrutura inabalável. Lamentou profundamente as luminárias vandalizadas mais uma vez: ontem estavam todas intactas, acessas. Hoje não.
Percebeu alarido diferente ao longe. "Abriu o sinal da Tamóios" - concluiu. Acelerou o passo e a mastigação, com o gosto de hortelã já em meia-vida.
Correu, parou no meio da pista, sacou do bolso traseiro o celular, ligou a câmera e viu desaparecer rapidamente o nome que costumava, ao lado do da filha, preencher sua vida de algum sentido.
"Essa foto vai ficar boa" - pensou, enquanto, feérica, a rapsódia de sons metálicos, buzinas, acordes mecânicos, correria de carros, motos, ônibus, caminhões e outros sentimentos loucos vinha qual manada de zebras em sua direção.
Fez umas duas fotos.
Correu para a calçada desviando de uma moto estúpida que chegava veloz.
"Um gosto de vidro e corte..." pensou.
"Quando chegar em casa quero ver essas fotos..."
Seguiu caminhando, mascando e cantarolando até o gosto de hortelã desaparecer por completo.

(Acervo pessoal)


quarta-feira, 18 de maio de 2016

Dor de Cotovelo


Minha linda
sei que te aborreci.
Se te magoei,
me perdoe.
Jurei de pés juntos
que nunca mais
lhe escreveria mas
o cotovelo inchado
não me deixa esquecer
a certeza de sua presença
(mesmo que remota)
e o conforto que veio
de suas palavras, alívio
nos momentos de dor
e de dúvida,
para quem talvez
não as merecesse.
Beijo.
Boa noite.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Sangue e Ferrugem


Às vezes a luz que vem dos olhos
se apaga um pouco e
caem as guardas da alma.

As mãos se desentrelaçam
e apenas as digitais
de um ou dois dedos hesitantes
e novamente infantis fazem
a conexão de nossos corpos
que não mais se pertencem.

Tudo se volta para dentro.
Todo sentimento é de peso.
Toda a Fé é escassa e o mundo
pequeno
parece girar mais rápido.

Sopra o vento trazendo frescor
para a noite de insana guerra.
Assusto-me com o roçar das
cortinas do quarto em minhas
panturrilhas nuas e tesas.

Volto-me para ver janela e céu preto.
Lá fora levantam-se lado a lado
Marte e Antares.
O Escorpião tem agora dois corações:
um cor de sangue, outro de ferrugem.

Sinto-me Órion mergulhando
em horizonte oposto
com a espada em punho
levando na boca um gosto de
sangue e ferrugem.


sábado, 7 de maio de 2016

As Flores na Penumbra


Resolveu arrumar sua estante como
se arrumasse também a própria vida.
Mudou livros de lugar
tirou alguns do armário
encaixotou outros
ordenou quase tudo de maneira
diferente da de sempre.
Misturou assuntos e cores
empilhou, emparelhou
permeou espaços
com objetos e memórias.

Ao fim do processo deitou-se
para apreciar e analisar o novo leiaute:
"aquele ali foi fulano quem deu..." 
"o verdinho não se encontra mais..."
"dentro daquele outro tem a foto dela sorrindo..."
"aquele de arquitetura é foda..."
"aquele peguei emprestado há anos...shame on me!"
Sorria, franzia a testa, cerrava os punhos, ofegava,
relaxava, desfilava sentimentos evidentes e também
muitos adormecidos para sempre.

Tudo isso balela.
Tudo subterfúgio.
Tudo cortina de fumaça
mascarando um amor em silêncio
e o pensamento fixo naquelas flores
que jaziam inertes na penumbra
em outro ponto da cidade.








sábado, 30 de abril de 2016

Sábado 30


A serenidade morava e
transbordava de seus
olhos castanhos.

A paz emanava de seus
movimentos básicos estivesse ela
prendendo para trás os cabelos
ou caminhando sobre nuvens
pelo corredor vazio.

Desvio então meus olhos desses pensamentos
tamborilando "A Força do Silêncio" com os
dedos sobre a mesa de um trabalho
que não rende mais na noite fria
do sábado 30 do mês de abril.



domingo, 24 de abril de 2016

Cravo, Rosa e colar de estrelas


Uma briga na rua
me leva à sacada.
Aos tapas estalados no ar
e às palavras sem nenhum calão
proferidas com dedos em riste
respondo olhando o céu de nuvens
densas, amareladas, rápidas,
de eventuais brechas
janelas para um negrume sideral
povoado de sonho
e colar de estrelas.
A mim só interessa uma delas:
aquela que será a
estrela da vida inteira.






sexta-feira, 22 de abril de 2016

Lois Lane salva o dia


O filme era longo e alucinante.
O bandidão confundia
as cabeças e sequestrava
a tranquilidade dos corações.
Os heróis digladiavam-se
de capa, armadura
e kriptonita em punho.
Não se sabia o que era bem
ou o que era o mal.
No auge da discordância
quase no golpe de misericórdia
chega a jornalista destemida,
joga-se na cena de corpo e alma
como de costume,
diz as palavras mágicas,
salva os heróis deles
mesmos e de quebra
o mundo inteiro...
No final até a Wonder Woman
apareceu para dar uma
forcinha.




sábado, 16 de abril de 2016

The Living City V


A cabeça dele tornara-se pequena para tantos pensamentos diferentes, destoantes, dissonantes, todos ao mesmo tempo. Voltava para casa à noite, chacoalhando no ônibus cheio, testa encostada no vidro da janela, torcendo para que não aparecesse ninguém que o obrigasse a se levantar e a ceder o assento, fosse por gentileza ou por obrigação. Para tanto olhava fixamente a paisagem quase negra lá fora.
Subindo Amazonas viu a silhueta pálida do Ed. Levy, com alguém fumando à porta.
Ajeitou seu corpo no assento plástico e percebeu reflexos nos vidros do veículo que lhe trouxeram imediatamente à lembrança o par de olhos que mais lhe marcara, a ponto de levá-los para sempre tatuados na alma. Suspirou fundo e resignado ao mesmo tempo em que o ônibus virava bruscamente em Tamoios e as pessoas levantavam-se para descer no próximo ponto.
Ruminou por alguns segundos aquele passado até que a bateria de ferros e metais do coletivo vazio misturou-se com o ruído de seus pensamentos, rangendo em uníssono infernal: odisparatedomuronogramadodaesplanadaasaudadedanadaquesentiadafilhaquemoravalongeeaquemnãoviaháummês
otrabalhootrabalhootrabalhootrabalhoasituaçãodelicadanacasadeseuspaisprecisavaurgenteviversuavidaerecomeçar
voltaraplanejarseusirmãosseusirmãosogalonalibertadoresocheirodosuordamulheramadaasdoresabdominaisintensas
nãovaitergolpenãovaitercopanãovaiterpaz...
Da cidade, que passava correndo lá fora, não sabia mais onde começava o grafitti e onde terminava o pixo do viaduto para sempre profanado. Com a mente ainda longe e ruidosa deu de ombros para tudo aquilo quando entraram por Sapucaí.
Acionou a campainha.
Faltava pouco para chegar ao seu destino.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Poesia pra mim

(por Joana Lessa Campos)

Para mim, poesia é amor
Para mim, poesia é vida
Para mim, poesia é a história
recontada pela visão do poeta

O poeta se expressou,
ou se amargou?
Temos poesias,
mas nem todos os dias.

(por Joana Lessa Campos)












domingo, 3 de abril de 2016

Os que tem asas


As asas dele eram de cera,
as dela, de madeira.

Ele alçava voos baixos
para fugir do sol
e colher, num rasante veloz as
flores todas no rés do chão.

Ela voava estratosferas
para vencer cordilheiras
e buscar, no espaço azul
sonhos limpos de uma vida zen.

Encontravam-se sempre
em algum lugar entre
céu e inferno para trocar
as colheitas que fizeram
e tocar as palmas de suas almas:
ele tinha olhos de beijo e de ternura
ela, perfume de amor e tranquilidade.

Ele era clássico e retilíneo.
Ela, barroca e exuberante.

Eram autênticos desse jeito.

(acervo pessoal)
















terça-feira, 29 de março de 2016

Escreviver


escrever é falar
cuspir, tossir, vomitar
pra não morrer, sufocar
com os próprios roucos roncos
é descolar os sentimentos broncos
muitos, poucos, loucos e tontos
condição de ser e estar
odiar, orar ou amar
escrever é falar

sábado, 26 de março de 2016

Um amor, Simon & Garfunkel


Somos próximos.
A chuva que molha agora a minha varanda
é a mesma que banha e hidrata as flores
que cultiva na jardineira de sua janela baixa.

Somos distantes.
O trovão que agora ouço ecoar no espaço
é o mesmo que a assustará no instante em que
esse verso chegar a você. Se chegar.

Mesmo tendo universos, risos e palavras em comum
os corações e os pés seguiram outras direções.
Abraços e beijos foram corrompidos por expectativas
falsificadas e são agora memórias desbotadas.

Nosso timing foi perfeito,
o tempo porém nunca foi plenamente nosso.
Nem passado nem presente.
O futuro se antecipou e fugiu por entre os dedos
de nossas mãos que nunca se entrelaçaram de verdade.

Sendo assim, melhor aumentar o volume
da música para abafar a chuva:

"So I'll continue to continue to pretend
My life will never end
And flowers never bend
With the rainfall."



quinta-feira, 24 de março de 2016

The Living City IV


Subiu devagar por Álvares Cabral, "meio" feliz por ter acabado de cortar o cabelo e ter pego de volta sua cara de gente, perdida e desgastada há meses nos espelhos da alma.
Ao mesmo tempo, pensava coisas dispersas enquanto conferia o potencial de chuva contido naquele céu cinzento das 14h:
"Engraçado: às vezes o trabalho está ok mas o coração não, então me incomodo... às vezes o coração dá show, mas o trabalho cai pelas tabelas. Mais incômodo. E quando os dois vão mal ou vão bem demais? Do nada aparecem esperança e otimismo, ceticismo e insegurança... foda. Queria entender essa porra toda!"
Pausa para atravessar uma rua.
Chegou à Praça que fica perto do escritório, observou tudo de longe e prendeu-se à trama dos pisos táteis que a contornam. Analisou os desenhos, os caminhos, os altos, os baixos e rebaixos, as mudanças de direção e de cores. 
Resmungou sem abrir a boca: "Ai meu Deus...esse trabalho que não me deixa!"
Abaixou a cabeça, cerrou os punhos seguiu em frente por uns mil quilômetros. Quando caiu em si percebeu-se andando em círculos, seguindo o caminho que as lajotinhas vermelhas indicavam.
Pensava cego em Isabelas, Cláudias, Carolinas e Marias...












sábado, 19 de março de 2016

Ponto de vista


Não sei se é o que
acumulamos por experiência
pelo tempo, pelos anos
por qualquer outra coisa
que empreste ou dê seu nome
e significado à palavra Vida,

O que sei é que a Vida
dá mais voltas que as voltas
que o mundo dá
e que com isso os sentimentos
tornam-se mais seletivos
claros e objetivos.

Sinto saudade de gente.

Não me importo com momentos
ou coisas que ficaram para trás.
Tenho saudade de quem é ou foi
importante para mim, de quem
é referência ou de quem me faz bem.

Se estão vivas ou não,
se estão perto ou longe
a saudade é a mesma.

Na vida o que importa são as pessoas.

São as pessoas.


sexta-feira, 4 de março de 2016

Voo


custei a entender que pele é a
porta de entrada para a tua alma
que teus olhos castanhos são convite
para conhecer um mundo inteiro

custei a escutar teus passos leves
vindo em minha direção quase sem
tocar o asfalto duro e negro como
as mentes que não se expõem

só te percebi quando já havia me passado

num último e rápido olhar avistei
tuas asas tatuagem aberta às costas
um impulso e um novo voo
para além de meus braços esticados
fora do alcance de meus olhos cabisbaixos


quarta-feira, 2 de março de 2016

Descaminho


o descaminho é feito geralmente a pé
passando no meio do povo
exigindo dele respostas prontas
para perguntas que nem sabe
se seria capaz de formular

busca nessas horas as piores
justificativas para seu buquê de
desmazelos oferecido sem dó
ao mundo inteiro

força curiosidades
exerce preconceitos
alimenta sensações
tenta sentir-se melhor
que tudo e que todos

sente dos perfumes e dos corpos suados
o cheiro ácido deixado no rastro e
no vácuo dos infinitos cruzamentos
ultrapassagens pelas calçadas
esquinas e faixas de pedestres
para sempre lotadas de
histórias pessoais e pegadas
anônimas

não olha nos olhos de ninguém
para não ter que abrir os seus
próprios olhos cegos

chora em silêncio as pitangas
de sua burrice acumulada
por séculos e séculos
amém


domingo, 28 de fevereiro de 2016

Código de área (51)


Fechou-se na biblioteca do escritório
com o telefone em punho, esperando
a ligação que naquele dia era insistente
e chata. Código de área: (51).

Não sabia bem o que nem o porquê
mas quase tudo ali dentro incomodava:
o calor excessivo,
o cheiro de papel amarelo e poeirento,
a ausência de uma janela para ver
pelo menos uma ponta do céu
prestes a escurecer de temporal.

Em gesto automático dedilhou as
lombadas dos livros como se fossem
teclas coloridas de um piano vertical.

A música oca que vinha daquele toque
atiçou a saudade da filha que vivia longe.
Fez pensar na mulher que nunca
saiu de sua cabeça e de sua vida
cujo perfume surgia agora do nada,
pulsando selvagens lembranças
irreconciliáveis com o presente de
seus corpos semi envergados.
de passado e paúra.

Desejou um beijo dela naquele momento
para acreditar que alguma coisa boa
iria acontecer, mesmo que, com isso,
ele voltasse a ser príncipe.

Lá fora o trabalho chamava urgente.
Sugava forças devolvendo sangue
suor e horas extras.

O telefone vibrava
piscava pela enésima vez
o número com o (51) à frente.

"Chatice..." pensou.

"Alô..." atendeu reticente.


sábado, 27 de fevereiro de 2016

Sobre o tempo


o tempo que passamos
apontando
reclamando e
corrigindo
os erros dos outros
nos impede de ter
tempo
para cometer os
nossos próprios
e necessários
erros













sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

O amor deles


O amor deles residia
no brilho dos olhos
de cada um quando se viam
e nada além disto.

O amor deles resistia
nos corações palpitando
em cada encontro marcado
cada um por um motivo.

O amor deles não cabia
em discursos densos ou vazios
mas transbordava em cada um
de maneira particular.

O amor deles sobrevivia
no passado, nos "eu te amo"
ditos às escondidas em tardes cheias
de sol ou em noites de vazio e solidão.

O amor deles existia,
existe e existirá sempre
pois amor é amor
e isso não se explica.


sábado, 6 de fevereiro de 2016

Insônia


Reinventava-se depois de mais uma insônia
daquelas de parar o tempo
desta vez, de bruços, corpo estirado
no parapeito do adro da Mercês de Cima
cabeça apontando oeste
olhos fechados pressionados contra
os antebraços e o rosto escondido
nariz de fora para respirar.

Pensava apenas no amor de sua vida.

Imaginava a cidade na noite escura
mesmo sem olhar nada:
Santa Efigênia
Antônio Dias
Mercês de Baixo
São Francisco de Assis
Praça
Museu
Zênite.
Carmo
Pilar
São Francisco de Paula
lá para os lados onde
acabam os dias
e o Pico ao longe,
Inconfidente ainda vivo,
testemunha de tudo,
camuflado na noite.

(Acervo pessoal)

domingo, 31 de janeiro de 2016

A vida como ela é - Parte I: Ah... Paris!


Ela estudava arquitetura.
A tia sugeriu que fosse trabalhar
com moda em Paris e ela foi.
Não pegou na tesoura nem na agulha.
Fez muita cena e inventou moda.
Terminou o curso por lá,
trabalhou em outra área,
conheceu um grego bacana,
casou-se com ele
e nunca mais voltou.

(baseado em fatos reais)


sábado, 30 de janeiro de 2016

Vai lá...


Resolveu seguir um conselho amigo:
"Vai lá... dá um tapa no cabelo,
passa um perfuminho,
vista-se de toda positividade possível,
deixe em casa tudo de negativo,
atenção para a leitura corporal
e escolha melhor os sapatos..."

De uma música que ela havia mandado
sem saber de quem ou de quando era
destrinchou toda a história do rock gaúcho
que foi devidamente anexada ao discurso
preparado há séculos e, mais uma vez,
ensaiado para estrear naquele dia.

Estava pronto para outro mergulho
sem expectativas como achava que deveria ser.
Sairia molhado até a raiz dos cabelos.
No fundo, queria mesmo era lavar a alma.

Vai lá...
Quem sabe?


quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Suave


ela tinha cheiro
de amor maduro
colhido em dia de brisa
sob a sombra da
árvore do benquerer


domingo, 24 de janeiro de 2016

Sonho, razão e emoção.


     A semana tinha sido difícil. Enfrentou problemas inevitáveis que, se não existissem, deixariam a sensação de que a vida não era para ser vivida.
     Nas horas de respiro seguia namorando as fotos dela. Nos olhos grandes, no sorriso aberto, na alma fluindo pelas poses e expressões congeladas, queria e conseguia enxergar paz e leveza. Mesmo sem conhecer o tom de sua voz alimentava expectativas e as matava com suspiros logo em seguida, experiente que era nos assuntos sentimentais.
     O sábado chegou nublado e feroz. Foi metade trabalho, metade descanso.
     No fim da tarde deitou exausto e dormiu. Num sonho rápido sentiu um incômodo seguido de dor dois dedos abaixo do mamilo esquerdo. Ainda em sonho levantou-se e despiu-se da blusa de malha branca para entender o que acontecia.
     Viu que alguma coisa forçava o espaço por entre suas costelas espetando a pele de dentro para fora. Ergueu a cabeça, olhou para os lados procurando alguém que pudesse lhe explicar aquilo e também para buscar o fôlego que já ameaçava faltar.
     Um pequeno corte abriu-se no local da dor e lá de dentro saltaram dois brincos de ouro com pedra facetada bem vermelha na ponta de cada um deles. Pareciam duas pequenas rosas lançadas para a luz diretamente de seu coração.
     A dor no entanto continuava. Pelo mesmo corte brotou uma ponta metálica, de aço, que logo se revelou uma grande agulha curva, semelhante àquelas de costurar tecidos grossos. Tinha quase um palmo de circunferência e brilhava muito. Olhou novamente em volta.
     O corte fechou-se em questão de segundos e deixou uma cicatriz. Houve um grande alívio pelo fim daquilo, pela dor que já não sentia e também por algum motivo que não sabia bem explicar.
     Quando foi mostrar os objetos para o irmão que passava por perto, o sonho acabou.
     Acordou confuso, com sensações de desprendimento e liberdade. Buscou em seu passado recente uma explicação racional para o sonho mas entendeu que ela viria de um tempo não tão próximo. Sorriu então com muita vontade de ser feliz.
     Tratou de armar-se com todos os suspiros que seus pulmões pudessem emitir para  alimentar todas as expectativas que nascessem dali para frente. Decidiu que elas deveriam morrer por si próprias e de velhice preferencialmente.
     Sorriu aliviado mais uma vez e saiu para uma uma vida nova em que todo esforço valeria a pena.

    



sábado, 16 de janeiro de 2016

Im-poesia


Poesia que reside
onde passa longe
qualquer poesia

é o furo na sola de meu sapato
registro de meu errar constante
pela urbe

são as goteiras em profusão
pelo teto de meu quarto
meus livros e papéis molhados

é o silêncio que faço diinteiro
em meditação pesada: correções
de pensamento e de conduta

é o beijo na boca nunca dado
é o cafuné que não houve
é o sonho não perseguido
é o grande Amor desperdiçado.


sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

31 de dezembro


Na tarde deserta
na Praça deserta
eu e ela
desenhamos nossas vidas
lemos nossos momentâneos livros.

Silêncio de feriado:
ouvimos a flor do
bouganville se desprender do talo
e chocar-se contra o chão.
Ouvimos os beijos do casal
in love do outro lado
da fonte desligada.

Solitário um rapaz
observa tudo do alto
da escadaria do coreto.

Tudo está mudo na cidade:
máquinas, carros, ônibus e prédios.
Tudo está mudo,
menos o que nos interessa ouvir.
Menos os nossos corações.