"Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada;
mas quando não desejo contar nada, faço poesia."
Manoel de Barros - Livro Sobre Nada

"O momento em que, hipoteticamente, você sente que está andando nu pela rua, expondo demais o coração, a alma e tudo o que existe lá dentro, mostrando demais de si mesmo. Esse é o momento em que, talvez, você esteja começando a acertar. "
Neil Gaiman - O Discurso "Faça Boa Arte"

"...eso es lo que siento yo en este instante fecundo..."
Violeta Parra - Volver a Los Diecisiete

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Sobre o que deixamos para trás (ou para frente).


"Papai, porque existem pessoas marrons e pessoas não marrons?"
    (Joana, aos 4 anos)

    Me peguei pensando nos últimos dias sobre o que deixamos de mensagem para as pessoas que nos cercam e, inevitavelmente, sobre o que deixaremos para trás quando partirmos deste mundo.
    No início me assustei: seria preocupação excessiva com a minha imagem perante os "outros"? Insegurança? A "idade" chegando? Pode até ser, mas este pensamento é fruto maior das reflexões de um pai sobre qual é a maneira mais adequada de se educar e instruir sua filha.
    Concluí que não há fórmula ou receita exata para isto.
    Nossa história, nossas relações familiares e amizades, nossa relação com o mundo e com o ambiente que nos cerca nos ensinam muito e o tempo todo, sem que, necessariamente, percebamos o quanto estamos aprendendo.
    Por conta dessa reflexão e ativando minha mania de vasculhar as lembranças e o passado, visitei pessoas com as quais convivi e que se foram, ora por conta da vida, ora por conta da morte. Percebi que carrego um pouco delas em tudo que sou e em tudo que faço. Isso vale também para aquelas pessoas presentes no dia a dia, pois conforme disse, não há regras a seguir.
    O tio Maurício, marido da tia Tita por exemplo: me viu fazendo palavras cruzadas quando tinha uns onze ou doze anos de idade. Eu usava letras de forma e ele deu a seguinte sugestão: ô Alex, faz o "D" desta maneira, senão ele fica parecendo um "O" ( pegou na minha mão e foi refazendo a letra).  Foi tão significativo, tão paternal, que até hoje eu me lembro dele sempre que faço um "D" com letra de forma. Ele está vivo em mim, diariamente, quase 20 anos depois de ter morrido.
    O outro tio Maurício, irmão de minha mãe, arquiteto com o qual trabalhei por 14 anos e que se foi há 8: são inúmeros os momentos em que o trago de volta durante o meu dia de trabalho. Não é raro pensar comigo mesmo: ô magrelo, inverte essa planta aqui e coisa e tal... como ele me dizia no escritório. Hoje em dia, quando vou pedir uma coisa para a minha filha ou chamá-la para ver algo, sempre solto um "ô magrela..."
    Ainda com a minha filha, sempre que preciso ser mais enérgico para chamar-lhe a atenção, o faço como meu pai fazia quando eu era criança: do nada me percebo estático, com a mesma expressão séria com a qual me olhava, e, se bobear, dizendo as mesmas palavras. Só não tenho os mesmos olhos verdes que ele tem... Falei isso hoje na hora do almoço e ele achou muita graça.
    Não perco a oportunidade de dizer às pessoas o que representam para mim, o quanto me ensinaram e ensinam e em que momento isso ocorreu. É gratificante para ambos.
    Ficaria horas a fio lembrando de fatos, situações e de muitas outras pessoas com as quais convivo ou convivi e que ajudaram a formar o que sou: parentes, amigos reais e virtuais, namoradas, professores, colegas de trabalho e, para não ser injusto e esquecer de alguém, paro por aqui.
    Hoje a Joana está com quase 8 anos e gosta das mesmas músicas que eu, quer ser arquiteta como eu, gosta de ser a goleira no futebol da escola e até torce (fanaticamente) pelo mesmo time. São coisas que podem mudar com os anos, mas o que importa é frisar o quanto uma criança nos observa e nos copia.
    Daí a reflexão.
    Daí as lembranças.
    Finalizando, percebo que somos uma colcha de retalhos, um mosaico, uma rapsódia composta pelo que colhemos da vida. Somos também aquilo que semeamos. Saber alinhavar todas as críticas e informações, juntar todas as lembranças boas e ruins e passá-las à frente de maneira responsável é a nossa mensagem, nossa música, nossa obra levando em conta o velho clichê:  "viver é uma arte."

P.S.: respondi à Joana dizendo que Deus fez as pessoas da mesma maneira como fez o restante da natureza. Que se ela observasse bem, veria árvores altas, baixas, umas mais tortas, outras mais retinhas, com folhas gordas, outras com folhas fininhas. Que se olhasse para os canteiros da Praça da Liberdade (estávamos lá na hora da pergunta), veria cada um com um tipo de flor e que todas elas combinadas, árvores e flores diferentes, formavam um conjunto bonito. Como seria sem graça se todas as árvores fossem iguais, pois as florestas não teriam surpresas. Como seria sem graça se os jardins tivessem flores de uma só cor, pois logo iríamos nos cansar de olhar para elas. Imagina então se as pessoas tivessem a mesma cara, mesma cor, os mesmos cabelos, a mesmas vozes...
Se a resposta teve efeito eu ainda não sei mas que teve "ajuda" de muita gente, isso teve...










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