"Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada;
mas quando não desejo contar nada, faço poesia."
Manoel de Barros - Livro Sobre Nada

"O momento em que, hipoteticamente, você sente que está andando nu pela rua, expondo demais o coração, a alma e tudo o que existe lá dentro, mostrando demais de si mesmo. Esse é o momento em que, talvez, você esteja começando a acertar. "
Neil Gaiman - O Discurso "Faça Boa Arte"

"...eso es lo que siento yo en este instante fecundo..."
Violeta Parra - Volver a Los Diecisiete

sexta-feira, 20 de maio de 2016

The Living City VI


Saiu do trabalho com a noite já formada: lua cheia e alta no céu, muita gente nas ruas e o trânsito lento de sempre.
Resolveu que caminharia até sua casa pois assim chegaria mais rápido. Tateou no bolso da camisa um último tablete de goma de mascar e calculou que o tempo de caminhada seria o mesmo que levaria para desaparecer o sabor de hortelã em sua boca.
Pegou o telefone e ligou para a filha para saber novidades. Uma onda de conforto e satisfação preencheu os buracos de sua alma quando ouviu sua voz.
Desligou e, automático, passou o dedo pela tela à procura de alguém cujo nome ficava próximo ao da filha na agenda iluminada. Hesitou por um segundo e nada fez. Achou prudente esperar mais um pouco pois ainda havia poeira de uma vida para baixar.
Seguiu caminhando e mascando. Viu aparecerem lentamente as criaturas da noite e já sentia o peso do sereno daquele fim de maio.
Caminhava, mascava e cantarolava clássicos. Mordeu a língua duas vezes.
Entrou pelo viaduto e imaginou acordes nas harpas gigantes que, em dias normais se disfarçam de arcos de concreto e estrutura inabalável. Lamentou profundamente as luminárias vandalizadas mais uma vez: ontem estavam todas intactas, acessas. Hoje não.
Percebeu alarido diferente ao longe. "Abriu o sinal da Tamóios" - concluiu. Acelerou o passo e a mastigação, com o gosto de hortelã já em meia-vida.
Correu, parou no meio da pista, sacou do bolso traseiro o celular, ligou a câmera e viu desaparecer rapidamente o nome que costumava, ao lado do da filha, preencher sua vida de algum sentido.
"Essa foto vai ficar boa" - pensou, enquanto, feérica, a rapsódia de sons metálicos, buzinas, acordes mecânicos, correria de carros, motos, ônibus, caminhões e outros sentimentos loucos vinha qual manada de zebras em sua direção.
Fez umas duas fotos.
Correu para a calçada desviando de uma moto estúpida que chegava veloz.
"Um gosto de vidro e corte..." pensou.
"Quando chegar em casa quero ver essas fotos..."
Seguiu caminhando, mascando e cantarolando até o gosto de hortelã desaparecer por completo.

(Acervo pessoal)


quarta-feira, 18 de maio de 2016

Dor de Cotovelo


Minha linda
sei que te aborreci.
Se te magoei,
me perdoe.
Jurei de pés juntos
que nunca mais
lhe escreveria mas
o cotovelo inchado
não me deixa esquecer
a certeza de sua presença
(mesmo que remota)
e o conforto que veio
de suas palavras, alívio
nos momentos de dor
e de dúvida,
para quem talvez
não as merecesse.
Beijo.
Boa noite.

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Sangue e Ferrugem


Às vezes a luz que vem dos olhos
se apaga um pouco e
caem as guardas da alma.

As mãos se desentrelaçam
e apenas as digitais
de um ou dois dedos hesitantes
e novamente infantis fazem
a conexão de nossos corpos
que não mais se pertencem.

Tudo se volta para dentro.
Todo sentimento é de peso.
Toda a Fé é escassa e o mundo
pequeno
parece girar mais rápido.

Sopra o vento trazendo frescor
para a noite de insana guerra.
Assusto-me com o roçar das
cortinas do quarto em minhas
panturrilhas nuas e tesas.

Volto-me para ver janela e céu preto.
Lá fora levantam-se lado a lado
Marte e Antares.
O Escorpião tem agora dois corações:
um cor de sangue, outro de ferrugem.

Sinto-me Órion mergulhando
em horizonte oposto
com a espada em punho
levando na boca um gosto de
sangue e ferrugem.


sábado, 7 de maio de 2016

As Flores na Penumbra


Resolveu arrumar sua estante como
se arrumasse também a própria vida.
Mudou livros de lugar
tirou alguns do armário
encaixotou outros
ordenou quase tudo de maneira
diferente da de sempre.
Misturou assuntos e cores
empilhou, emparelhou
permeou espaços
com objetos e memórias.

Ao fim do processo deitou-se
para apreciar e analisar o novo leiaute:
"aquele ali foi fulano quem deu..." 
"o verdinho não se encontra mais..."
"dentro daquele outro tem a foto dela sorrindo..."
"aquele de arquitetura é foda..."
"aquele peguei emprestado há anos...shame on me!"
Sorria, franzia a testa, cerrava os punhos, ofegava,
relaxava, desfilava sentimentos evidentes e também
muitos adormecidos para sempre.

Tudo isso balela.
Tudo subterfúgio.
Tudo cortina de fumaça
mascarando um amor em silêncio
e o pensamento fixo naquelas flores
que jaziam inertes na penumbra
em outro ponto da cidade.