"Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada;
mas quando não desejo contar nada, faço poesia."
Manoel de Barros - Livro Sobre Nada

"O momento em que, hipoteticamente, você sente que está andando nu pela rua, expondo demais o coração, a alma e tudo o que existe lá dentro, mostrando demais de si mesmo. Esse é o momento em que, talvez, você esteja começando a acertar. "
Neil Gaiman - O Discurso "Faça Boa Arte"

"...eso es lo que siento yo en este instante fecundo..."
Violeta Parra - Volver a Los Diecisiete

sexta-feira, 24 de junho de 2011

A 4 Mãos

                                                                                                   

     Trabalharia naquele domingo inteiro: projeto grande para finalizar e ser entregue no dia seguinte, necessário para tocar a vida pelos próximos 30 dias.
 
     A rotina: acordar cedo-banho quente-mesa da sala-café-trabalho-almoço-trabalho-talvez o futebol no rádio-trabalho-café-trabalho-café-trabalho, não seria novidade e não haveria tempo para nada mais ou para ninguém. Não queria saber se o dia estaria nublado, ensolarado, frio, quente ou chuvoso...sabia apenas que aquela bendita escola tinha que ficar pronta em poucas horas.

     E assim passou o dia.

     Pelas 10 e tanto percebe a filha de quase quatro anos chegar sonolenta, com o mesmo discurso de quase toda noite engatilhado na ponta da língua:

"Papai, conta uma estorinha?" 

     Mas, ao reparar no arsenal colorido de lápis, canetas e papéis espalhados pela mesa, muda para um esfuziante e animado:

"Papai! posso te ajudar a trabalhar?" 

     Ele, sem tirar os olhos do que fazia respondeu seco: 

"Não, minha filha...O papai precisa terminar este trabalho. Prometo que amanhã você me ajuda".

"MAMÃÃÃE..." ela gritou, "o papai não quer deixar eu trabalhar com ele..."

      A  palavra final veio de um dos quartos da casa, em voz abafada por cobertores, travesseiros e sono:

 "Deixa...assim ela se acalma e vai dormir logo...boa noite pra vocês..."
   
     Então deixou.

     Sem tirar os olhos do que fazia, disponibilizou papel, lápis, canetas e até um pedaço da mesa. Em poucos minutos escutou: 

"Papai, acabei. Vou dormir..." 

     Ganhou um beijo no rosto e o sossego que tanto queria.
 
"Boa noite filha".

     Já de madrugada, quando finalmente deixou de ser siamês com o trabalho e já recolhia todo o material espalhado pela mesa, parou atônito com a "obra" da filha bem debaixo de seus olhos. 

     Ela havia absorvido, em cinco minutos, um esforço seu de dias. Expôs à sua maneira, com linhas irregulares mas francas e honestas o que havia observado na confusão daquela mesa de jantar transformada em home-office dominical.

     Bateu um regret instantâneo: por que diabos não desgrudou os olhos do que fazia por meros 30 segundos na hora em que aquele desenho ficara pronto? 

     Agora estava tarde demais para o amasso, para o cheiro no cangote e para milhares de outras coisas que um pai orgulhoso faria. Contentou-se com visita rápida ao quarto para um beijo na testa de quem fora tão brilhante e que já ia distante no mundo dos sonhos.

    Deitou-se contente e realizado, pensando em qual seria o próximo "trabalho" que fariam juntos, a quatro mãos.


.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Montanha

Sinto-me vivo, pulsante, vibrante,
E no entanto sou, ao mesmo tempo,
Montanha em país muito frio:
Imponente e coberto de gelo.

Gelo que derrete ao sol
De cada idéia nova, tornado em
Água que escorre pelas encostas,
Infiltrando-se por fissuras na pedra,
Em rugas imemoriais
Adormecendo em interior quente
E confortável até
O frio chegar novamente.

A água volta ao gelo e se expande
Com força sem igual na face da Terra
(ou em seu interior)
Explode as fissuras em milhões de pedaços,
Me esfarela.

E eu, Montanha,
Morro aos poucos agora,
Com o corpo rachado e o
Interior exposto em frestas,
À mercê de outros sóis,
De outros gelos e outras águas,
À espera da intempérie final.

Desgaste...


.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Liberdade e Coragem

Sua foto que vislumbrei
Por acaso
Hoje estampa
Minha manchete pessoal.

Está linda como sempre,
Brilhante como nunca,
E intensa.

O que me incomoda lá
Na foto
A ponto de anestesiar
Braços
Pernas,
Movimentos
E pensamentos
É o fundo-paisagem
Que te emoldura:

Claramente não está
Mais aqui.

Claramente, o anfiteatro
Que se abre atrás de você
Mostra que está solta
No mundo,
Livre.
Como sempre foi.

Claramente te perdi.

Liberdade...

Palavra que me assalta
Diariamente,
Que me bate na face,
Dizendo: "estou aqui, me pega!"

Palavra que me
É tão cara,
Em dois sentidos:

Cara por ser desejada,
Esperada,
Buscada.
Uma busca infrutífera,
Que esbarra em minha
Ferramentaria tão limitada.

A liberdade é cara para mim.

O preço a pagar é alto:
Não ter coragem para
Me libertar
Me custa a saúde,
Me custa a resistência
Pode me custar a vida.

Você, minha cara
Se libertou de mim.

E eu,
Ano e meio depois
Continuo preso a você,
"Por pensamentos e palavras
Atos e omissões,
Por minha culpa,
Minha tão grande culpa.
E peço aos anjos e santos(...)"
E à minha razão,
Neste anfiteatro
Que vislumbro,
Que me libertem
Da prisão
E da angústia
Que me governam.

Coragem e Liberdade.


.