"Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada;
mas quando não desejo contar nada, faço poesia."
Manoel de Barros - Livro Sobre Nada

"O momento em que, hipoteticamente, você sente que está andando nu pela rua, expondo demais o coração, a alma e tudo o que existe lá dentro, mostrando demais de si mesmo. Esse é o momento em que, talvez, você esteja começando a acertar. "
Neil Gaiman - O Discurso "Faça Boa Arte"

"...eso es lo que siento yo en este instante fecundo..."
Violeta Parra - Volver a Los Diecisiete

terça-feira, 29 de março de 2016

Escreviver


escrever é falar
cuspir, tossir, vomitar
pra não morrer, sufocar
com os próprios roucos roncos
é descolar os sentimentos broncos
muitos, poucos, loucos e tontos
condição de ser e estar
odiar, orar ou amar
escrever é falar

sábado, 26 de março de 2016

Um amor, Simon & Garfunkel


Somos próximos.
A chuva que molha agora a minha varanda
é a mesma que banha e hidrata as flores
que cultiva na jardineira de sua janela baixa.

Somos distantes.
O trovão que agora ouço ecoar no espaço
é o mesmo que a assustará no instante em que
esse verso chegar a você. Se chegar.

Mesmo tendo universos, risos e palavras em comum
os corações e os pés seguiram outras direções.
Abraços e beijos foram corrompidos por expectativas
falsificadas e são agora memórias desbotadas.

Nosso timing foi perfeito,
o tempo porém nunca foi plenamente nosso.
Nem passado nem presente.
O futuro se antecipou e fugiu por entre os dedos
de nossas mãos que nunca se entrelaçaram de verdade.

Sendo assim, melhor aumentar o volume
da música para abafar a chuva:

"So I'll continue to continue to pretend
My life will never end
And flowers never bend
With the rainfall."



quinta-feira, 24 de março de 2016

The Living City IV


Subiu devagar por Álvares Cabral, "meio" feliz por ter acabado de cortar o cabelo e ter pego de volta sua cara de gente, perdida e desgastada há meses nos espelhos da alma.
Ao mesmo tempo, pensava coisas dispersas enquanto conferia o potencial de chuva contido naquele céu cinzento das 14h:
"Engraçado: às vezes o trabalho está ok mas o coração não, então me incomodo... às vezes o coração dá show, mas o trabalho cai pelas tabelas. Mais incômodo. E quando os dois vão mal ou vão bem demais? Do nada aparecem esperança e otimismo, ceticismo e insegurança... foda. Queria entender essa porra toda!"
Pausa para atravessar uma rua.
Chegou à Praça que fica perto do escritório, observou tudo de longe e prendeu-se à trama dos pisos táteis que a contornam. Analisou os desenhos, os caminhos, os altos, os baixos e rebaixos, as mudanças de direção e de cores. 
Resmungou sem abrir a boca: "Ai meu Deus...esse trabalho que não me deixa!"
Abaixou a cabeça, cerrou os punhos seguiu em frente por uns mil quilômetros. Quando caiu em si percebeu-se andando em círculos, seguindo o caminho que as lajotinhas vermelhas indicavam.
Pensava cego em Isabelas, Cláudias, Carolinas e Marias...












sábado, 19 de março de 2016

Ponto de vista


Não sei se é o que
acumulamos por experiência
pelo tempo, pelos anos
por qualquer outra coisa
que empreste ou dê seu nome
e significado à palavra Vida,

O que sei é que a Vida
dá mais voltas que as voltas
que o mundo dá
e que com isso os sentimentos
tornam-se mais seletivos
claros e objetivos.

Sinto saudade de gente.

Não me importo com momentos
ou coisas que ficaram para trás.
Tenho saudade de quem é ou foi
importante para mim, de quem
é referência ou de quem me faz bem.

Se estão vivas ou não,
se estão perto ou longe
a saudade é a mesma.

Na vida o que importa são as pessoas.

São as pessoas.


sexta-feira, 4 de março de 2016

Voo


custei a entender que pele é a
porta de entrada para a tua alma
que teus olhos castanhos são convite
para conhecer um mundo inteiro

custei a escutar teus passos leves
vindo em minha direção quase sem
tocar o asfalto duro e negro como
as mentes que não se expõem

só te percebi quando já havia me passado

num último e rápido olhar avistei
tuas asas tatuagem aberta às costas
um impulso e um novo voo
para além de meus braços esticados
fora do alcance de meus olhos cabisbaixos


quarta-feira, 2 de março de 2016

Descaminho


o descaminho é feito geralmente a pé
passando no meio do povo
exigindo dele respostas prontas
para perguntas que nem sabe
se seria capaz de formular

busca nessas horas as piores
justificativas para seu buquê de
desmazelos oferecido sem dó
ao mundo inteiro

força curiosidades
exerce preconceitos
alimenta sensações
tenta sentir-se melhor
que tudo e que todos

sente dos perfumes e dos corpos suados
o cheiro ácido deixado no rastro e
no vácuo dos infinitos cruzamentos
ultrapassagens pelas calçadas
esquinas e faixas de pedestres
para sempre lotadas de
histórias pessoais e pegadas
anônimas

não olha nos olhos de ninguém
para não ter que abrir os seus
próprios olhos cegos

chora em silêncio as pitangas
de sua burrice acumulada
por séculos e séculos
amém