"Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada;
mas quando não desejo contar nada, faço poesia."
Manoel de Barros - Livro Sobre Nada

"O momento em que, hipoteticamente, você sente que está andando nu pela rua, expondo demais o coração, a alma e tudo o que existe lá dentro, mostrando demais de si mesmo. Esse é o momento em que, talvez, você esteja começando a acertar. "
Neil Gaiman - O Discurso "Faça Boa Arte"

"...eso es lo que siento yo en este instante fecundo..."
Violeta Parra - Volver a Los Diecisiete

quarta-feira, 23 de maio de 2018

The Living City X - A saudade reconfigurada.


     Era de manhã, bem cedo.
     A janela da sala em que trabalhava deixava entrar a vista de um bairro debruçado por morros bastante familiares. Prédios multicoloridos pareciam olhar estáticos para a mesma direção, dando a cara para o sol morno de maio tipicamente belo-horizontino.
     A janela, fechada lacrada, produzia um quase silêncio, trazendo de fora sons pálidos, notícias de vozeirios anônimos e rangidos de algum caminhão fumacento, seguramente tentando vencer com muito custo, as encostas famosas do Santo Antônio.
     De dentro, bem de dentro, além das batidas do coração apressado, revia momentos de seu último encontro com a mulher que amava: o som de quando entrelaçavam as mãos, o leve rufar das carícias feitas às cegas, desbravando novamente seus corpos recém descobertos. Ouvia o caminhar de dedos por costas nuas e por entre florestas de cabelos despenteados, além da reciprocidade dos ruídos e ecos de declarações que jamais imaginavam um dia compartilhar.
     Maio de céu limpo e azul.
     Em meio ao turbilhão de tarefas a cumprir naquela segunda-feira, sentia a falta dela.
     Trabalho e vida urgiam como um cachorro Fila cor de caramelo latindo em seu calcanhar, deixando-o ansioso para encontrar uma solução para tudo, ao mesmo passo em que, naquele instante, atualizava suas configurações para a palavra "saudade".

(acervo pessoal-21-05-2018)