"Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada;
mas quando não desejo contar nada, faço poesia."
Manoel de Barros - Livro Sobre Nada

"O momento em que, hipoteticamente, você sente que está andando nu pela rua, expondo demais o coração, a alma e tudo o que existe lá dentro, mostrando demais de si mesmo. Esse é o momento em que, talvez, você esteja começando a acertar. "
Neil Gaiman - O Discurso "Faça Boa Arte"

"...eso es lo que siento yo en este instante fecundo..."
Violeta Parra - Volver a Los Diecisiete

terça-feira, 30 de junho de 2015

Toque Solar


Ela me dava seu carinho.
Ela me dava seu amor.
Seu toque arrepiava e aquecia
Todo o meu corpo da cabeça aos pés,
Lenta e gradualmente
Como o sol de inverno
Me aquece agora deste lado da rua,
Nesta calçada comprida e larga
Que percorro pari passu com a poesia,
Indo para além de onde a vista alcança
Ou até que caia exausto e de joelhos sobre o meio-fio
Limite entre razão, lembranças e circunstâncias.

Nosso silêncio dizia mais
Do que tudo que nos desejávamos
Em tempos de paz.
Nossos gritos de guerra
Nos feriam, deixavam
Sinais de pólvora por nossas muitas mãos,
Detonavam bombas, abraços e beijos
Violentos e ensurdecedores
Dentro da trincheira de nossos lençóis
Rotos e puídos pelo conflito intenso.

Depois, mais silêncio, rostos colados, olhares incrédulos
E fixados no fardamento espalhado pelo chão
Prestes a sumir, levado pela enxurrada da chuva intensa
Que caía sempre para diluir nosso suor e suas lágrimas
Em momentos de despedida e lama.

Eu, com lágrimas tardias e quase secas
Tentava apagar memórias de guerra e paz
Percorrendo as calçadas iluminadas de inverno,
Buscando encontrar nelas alguma razão
E o calor perdido de seu toque solar.

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Soltando os Bichos I


É um monstro dentro de uma caixa,
Uma coisa adormecida
Um desejo reprimido
Morando agora debaixo da minha cama.

Bicho estranho que só anda aos pares.
Preto
Manchado
Pesado
E leve também.

Cheguei em casa com eles ontem
Na cabeça e nas mãos,
De corpo sedento e alma resoluta
Disposto a me entregar finalmente
Mas evitando encará-los de frente.

Sombra prestes a me levar,
A me seguir talvez guiar
Passo a passo para experiências
Sempre negadas e desconhecidas,
Ou simplesmente novas,
Inaugurando buquê das coisas
Que nunca fiz
E que se tornaram inadiáveis.

Sejam bem-vindos, tênis de corrida!

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domingo, 28 de junho de 2015

Foi Bom!


Partiu pra casa correndo como um Road Runner
Seco que estava para abrir sua última Ice geladérrima,
Saciar seu paladar infantil
E temperar assim todas as palavras boas que acabara
De ouvir vindas de quem nunca imaginou
Ser capaz de dizer nada daquele tipo ou
Daquela maneira depois de tantos anos.

Não entendia o dia frio
Quente agora,
O azul profundo do céu
Totalmente cinza há 5 minutos,
A perspectiva de muro de concreto a um palmo de seu nariz
Transformada em vista amanhecer no Pico da Bandeira
A um simples giro sobre seus próprios calcanhares
No começo da desabalada carreira.

Queria decifrar aquilo tudo num gole ou dois,
Degustar a glória momentânea,
Retribuir ao mundo na mesma moeda
E se embriagar de vida
Ainda mais.

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terça-feira, 23 de junho de 2015

Hoje o Samba Não Saiu


Enxergava a vida e o mundo
Como um quadro de Afremov
E cantei sambinha mesmo,
Feito de uma nota só.

Nota só era de noite
Nota só era de dia
Nota só incomodava
Atravessei a melodia.

Nota só era danada
Foi pro samba proibido
Foi pro samba em disparada
Foi pro samba sem partido.

E o samba não teve grita,
Não teve choro não teve vela
Do Noel mesclei a fita
Com uma tal flor amarela. 

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segunda-feira, 22 de junho de 2015

Depois da flor, um coração


"Oi."
Disse ela depois de alguns dias de silêncio.
Ele reconheceu a voz e respondeu semicerrando os olhos
Sem tirá-los, no entanto, da flor cremosa desenhada
Na espuma do capuccino que acabara de pedir.

"Ei!."
Verbalizou após alguns segundos.
Fingiu surpresa com o encontro, pois sabia
Que cedo ou tarde a veria por aquelas bandas da urbe.
No fundo da alma ele quis dizer:
"Ainda bem que está aqui! Aquela música me angustiou, me fez pensar que nunca mais nos veríamos..."

Conversaram e se atualizaram sobre coisas da vida.
Ela não pediu nada para beber.
Estava com certa pressa e por isso ficou
Meio assentada, meio de pé,
Com o cotovelo esquerdo apoiado no balcão de madeira.

Ele sorvia aos poucos a bebida,
Olhou-a de frente, inteirinha.
Descobriu uma novidade para contar.
Riu de algumas graças em comum.
Viu e apontou para um conhecido de ambos que passava perto.

Não se lembra de mais nada que aconteceu naquele dia
Depois que, ao fim do derradeiro gole, ela mostrou sorrindo
Que a xícara meio vazia, ostentava em seu interior
Um formato perfeito de coração.

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quinta-feira, 18 de junho de 2015

Junho


Manhã de azul intenso e sol tentando
Em vão aquecer a cidade acordada,
Viva e indiferente aos pecadinhos e mazelas
de quem leva a vida a sério demais.

Seu trabalho transcorre ao som
De Gershwins salvadores
Vomitados ouvido adentro
Pelos fones em volume dez.

Lá fora o carro da pamonha
Vocifera gordices a preços módicos
Enquanto passa voando
Um camburão da polícia.

Um rádio estridente diz ao longe
Notícias um tanto genéricas
E fala da queda do helicóptero.
Alguém desce a rua tossindo roucamente.

A brisa entra pela janela murmurando sonhos,
Assume ares de vento e faz roçar as cortinas
No espaldar alto das cadeiras
Da sala de jantar.

Movimentos de maré,
Ondas espuma branca
Indo e vindo
Na arrebentação deserta,

Dorso de dedos em ação,
Carinhos no rosto da mulher preferida.
O único som que realmente escutava
naquele momento.

Manhã de azul intenso e sol.


quarta-feira, 17 de junho de 2015

Um Momento


"Gosta de carinho?" Perguntou ele.
Ela olhou para baixo e, imediatamente, uma mecha de cabelo cai sobre sua testa e olho direito.
"Senta perto de mim!" Insistiu ele.
Ela, imóvel, sorriu discreta.
E aconteceu.

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segunda-feira, 15 de junho de 2015

Dança dos Óculos


Para se enxergarem melhor,
Os óculos.

Ela os colocava.
Ele os tirava.

Os dela combinavam
Com seus olhos castanhos
E com o céu mais azul do mundo
Refletido nas lentes quase planas,
Janelas de quem enxerga longe,
Abertas também para um vasto mundo interior.

Os dele ficaram em cima da mesa
Com suas hastes braços cruzados.
Seus olhos ficaram nus
Como seus pensamentos e momentos.
Janelas para seu coração e sua alma,
Um pouco confusos com tanto sentimento.

Enfim ele se acalmou e ficou
Feliz em se ver refletido
E fundido naqueles vidros

Meio olhos castanhos
Meio céu azul
Meio sereno
Meio universal

Inteiro admiração.

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domingo, 14 de junho de 2015

Na Medida do Desejo


Qual é a medida do desejo?

Profundo como a água das fontes
Onde jogamos as moedas
E pensamos o bem?
Ou
Profundo como um mergulho
Em mar aberto oceano
Indo até onde se apagam os raios de sol?

Seria a medida de águas
Em que vemos o fundo
E que mal nos chega aos joelhos?
Ou
A medida da total imersão
De corpo e alma
Da qual até esta sai encharcada?

Será a medida da circunferência
Dos braços em arco
De um abraço mútuo que ficou no ar?
Ou
O tempo mínimo de um carinho
Ao pé do ouvido,
Gerador de um olhar de soslaio,
Mais sorriso que olhar?

Qual é a medida do desejo?
Isso não importa.
Desejo é desejo.
Se o alimentamos, ele cresce.

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sábado, 13 de junho de 2015

Maria


As Marias que conheço
Ventam,
Se reinventam,
Giram rodas,
Furacões.

As Marias que conheço
Se sustentam,
Se complementam
E são várias,
Como as Minas de Guimarães.

Maria tem força,
Tem graça,
Tem gana sempre
Tem belos e irresistíveis
Olhos castanhos.


sexta-feira, 12 de junho de 2015

The Living City I


Personagens: Narrrador, Moça 1, Moça 2, Moça 3, Moça 4.

Local: avenida movimentada perto do shopping.

Fim de tarde. Hora do rush.

O anel grosso de prata
Cai da mão de Moça 1
Quica no meio fio e rola
Metálico e cambaleante
Até o meio da faixa de pedestres.

Moça 1 e Moça 2 olham-se nervosas
E soltam exclamação abafada e simultânea.
O sinal está vermelho para elas.

Vem sequência de carros:
um passa longe do anel,
outro passa por cima sem tocá-lo,
o terceiro passa com a roda bem perto e ele treme.
Moça 1 e Moça 2 também tremem e se tocam nervosas.

Moça 3, do outro lado da faixa
Atravessa correndo antes do quarto carro
Passar voando, de faróis apagados.
Sem perceber chuta com força o anel
Que vai parar nos pés de Moça 2.
Ela grita, o apanha e entrega para Moça 1.

O sinal abre e elas seguem rindo alto
Com historinha na manga para contar em casa
Mais logo, no intervalo do jornal ou da novela.

Narrador observa tudo sério, calado,
Sem parar de pensar em Moça 4,
Que nada tem a ver com a história
Está em outro ponto da cidade
E tem lindos olhos castanhos claros.


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Um Poema Perdido


Às vezes não adianta mesmo!

Por mais que haja felicidade
Por mais que haja inspiração,
Esperança e vontade de escrever

Os poros fecham-se
As pontas dos lápis quebram-se
As canetas entopem-se
Os dedos encolhem-se
Os teclados travam-se
O blogger dá biziu.

O que era para vir poesia
Assume tudo que é forma
Menos poema, não havendo

Adélia
        Drummond
                        Neruda
                                  Leminski
                                               Pessoa

Qualquer para salvar a noite.

No desespero da causa
Invoco sol de primavera
E recebo em troca um beijo seu,
Etéreo, partido e equatorial:

"...Você olhou sorrindo pra mim / Me acenou um beijo de paz / Virou minha cabeça / Eu simplesmente não consigo parar / Lá fora o dia já clareou..."

O coração, no entanto, continua batendo.


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quinta-feira, 11 de junho de 2015

Na Praça ao Pé da Serra


Eu à noite na praça
Ao pé da serra
Paredão negro às costas
E lá embaixo a cidade
Espalhada em ondas
Mar de luz
Vasto mundo
Mundão.

Alguma luz dali é ela,
Certamente ela,
Solta em meio à multidão
De pontos brilhantes
Da vista desse horizonte belo.

Quando em surto delírio
Surpresa!
Da vista uma luz se solta
Me invade o coração.
Me abre os olhos
Me enxerga
E me eleva a condição.

Me preenche me percebe
Consciente.
Diz que uma luz apenas
Não é ela
É toda aquela  multidão.

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terça-feira, 9 de junho de 2015

Encontre-se (ou o amor revisitado)


Por muito tempo
Pela falta de fé
Ou pelo excesso de certeza
Acreditei que no amor
Os opostos se atraíssem.

Considerei
Narcisismo
Egoísmo
Querer me encontrar
Em outra pessoa.

Pensamento de quase
Década.

Amor não se mede.
Amor não se classifica.
Amor não se teme.

Não é errado encontrar-se
Em alguém
Desde que já tenha
Se encontrado
Em si mesmo.

Encontre-se
No carinho e na ternura.
Sempre.
No recado deixado ao lado
Da xícara preferida
Logo pela manhã,
Ou no link da música
Enviado pelo whatsapp.

Encontre-se no alvoroço
Dos lençóis amarrotados
Suados e surrados à noite
Ou em qualquer hora.

Encontre-se
No silêncio das palavras
Proferidas pelos olhos
Fechados
Na hora do beijo e
No aperto do abraço.

Encontre-se na companhia
Pura e simples das pessoas
Essenciais.

Encontre-se no risco
E na certeza de entregar-se
Àquilo em que acredita
E intui.

Go ahead!
Encontre-se inteiramente em alguém.
Ou em partes,
Em pensamento,
       espírito
       olhares
       sorrisos
       gestos
       atitudes
       cheiros e lembranças.

Não desconsidere os sinais
Que a vida oferece.

No amor
Os opostos não se atraem.
Os semelhantes se encontram.
Encontre-se no amor
E cuide-se bem.