"Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada;
mas quando não desejo contar nada, faço poesia."
Manoel de Barros - Livro Sobre Nada

"O momento em que, hipoteticamente, você sente que está andando nu pela rua, expondo demais o coração, a alma e tudo o que existe lá dentro, mostrando demais de si mesmo. Esse é o momento em que, talvez, você esteja começando a acertar. "
Neil Gaiman - O Discurso "Faça Boa Arte"

"...eso es lo que siento yo en este instante fecundo..."
Violeta Parra - Volver a Los Diecisiete

sábado, 26 de janeiro de 2013

Leaving January (forward)


De Belo já não sei
O que tenho
O que falo
O que faço.

Porque tudo agora tende ao funcional
E só se busca lucro e vantagem
E superficialidades.

O Horizonte já não sei
Onde está
Onde olhar
Onde vai parar.

Porque o voo agora é na vertical
E só vejo céu sol nuvem lua
E estrelas pela frente.

A ordem é não olhar para trás.
Não posso mais ter saudade
Da vida que descartei.
Não posso mais me valer
Daquilo que nunca tive.
Não posso mais me arrepender
Dos erros que não cometi.

De Belo (e) Horizonte ficam
O chão em que hoje piso
A terra em que nasci
A estrada que até agora percorri.
 

Edward Hopper, An excursion into philosophy, 1959.

















 

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

(In)Farto


Estou farto de saber
Quem sou
Mas as pessoas ao redor
Insistem em me lembrar.
Algumas com jeito,
Outras, sem jeito algum.
O fato é que estou farto
De me saber.

Me encontro sempre
E a toda hora
Nas torneiras que uso pela manhã,
Nas portas abertas maçanetas acionadas com cuidado,
No meu reflexo rosto inchado dentro do copo d'água
Ou num olho só reprisado por falta de espaço para o resto
Dentro do copinho de café.
Sou eu pelos caminhos de casa,
Seguindo com os olhos os rodapés
Ou a risca dos rejuntes do piso
Quartobanheirocozinhaquartosalarua...

Eu sou! a maneira como me apoio
Em uma das pernas
Lavando a louça
Esperando o ônibus
Ou mofando em fila qualquer...
Eu estou lá, sou eu!
Eu sei!

Sei quem sou em cada gesto
Fala atitude.
Desenhando escrevendo trabalhando
Pensando falando
Me dirigindo às pessoas
E as ouvindo
Dirigindo o carro ou minha vida.
E nisso tudo sou tão eu...

Queria me ver e me saber
Amando de novo
Pois da última vez
Quase não soube
Ou pouco me vi
Pois os espelhos não me suportaram,
As noites foram cegas
E os resultados obscuros.
Mesmo assim
Fui eu.

Me vejo aqui agora
(In)Farto do miocárdio
Matando tempo e pensamentos
Matando esperanças velhas
Criando esperanças novas,
Sendo tão eu
Quanto sempre fui.

Eu sou assim e pronto!




















Primeiro desenho meu feito pela Joana. 2008 - "Eu sou assim."

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Os Ombros Suportam o Mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.



Carlos Drummond de Andrade


 

 








  

Os versos acima foram publicados originalmente no livro "Sentimento do Mundo", Irmãos Pongetti - Rio de Janeiro, 1940.  Foram extraídos do livro "Nova Reunião", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1985, pág. 78. 
Foto: http://leituradomundofantasticodebob.blogspot.com.br/2012/11/eu-etiqueta.html

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