"Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada;
mas quando não desejo contar nada, faço poesia."
Manoel de Barros - Livro Sobre Nada

"O momento em que, hipoteticamente, você sente que está andando nu pela rua, expondo demais o coração, a alma e tudo o que existe lá dentro, mostrando demais de si mesmo. Esse é o momento em que, talvez, você esteja começando a acertar. "
Neil Gaiman - O Discurso "Faça Boa Arte"

"...eso es lo que siento yo en este instante fecundo..."
Violeta Parra - Volver a Los Diecisiete

domingo, 28 de fevereiro de 2016

Código de área (51)


Fechou-se na biblioteca do escritório
com o telefone em punho, esperando
a ligação que naquele dia era insistente
e chata. Código de área: (51).

Não sabia bem o que nem o porquê
mas quase tudo ali dentro incomodava:
o calor excessivo,
o cheiro de papel amarelo e poeirento,
a ausência de uma janela para ver
pelo menos uma ponta do céu
prestes a escurecer de temporal.

Em gesto automático dedilhou as
lombadas dos livros como se fossem
teclas coloridas de um piano vertical.

A música oca que vinha daquele toque
atiçou a saudade da filha que vivia longe.
Fez pensar na mulher que nunca
saiu de sua cabeça e de sua vida
cujo perfume surgia agora do nada,
pulsando selvagens lembranças
irreconciliáveis com o presente de
seus corpos semi envergados.
de passado e paúra.

Desejou um beijo dela naquele momento
para acreditar que alguma coisa boa
iria acontecer, mesmo que, com isso,
ele voltasse a ser príncipe.

Lá fora o trabalho chamava urgente.
Sugava forças devolvendo sangue
suor e horas extras.

O telefone vibrava
piscava pela enésima vez
o número com o (51) à frente.

"Chatice..." pensou.

"Alô..." atendeu reticente.


sábado, 27 de fevereiro de 2016

Sobre o tempo


o tempo que passamos
apontando
reclamando e
corrigindo
os erros dos outros
nos impede de ter
tempo
para cometer os
nossos próprios
e necessários
erros













sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

O amor deles


O amor deles residia
no brilho dos olhos
de cada um quando se viam
e nada além disto.

O amor deles resistia
nos corações palpitando
em cada encontro marcado
cada um por um motivo.

O amor deles não cabia
em discursos densos ou vazios
mas transbordava em cada um
de maneira particular.

O amor deles sobrevivia
no passado, nos "eu te amo"
ditos às escondidas em tardes cheias
de sol ou em noites de vazio e solidão.

O amor deles existia,
existe e existirá sempre
pois amor é amor
e isso não se explica.


sábado, 6 de fevereiro de 2016

Insônia


Reinventava-se depois de mais uma insônia
daquelas de parar o tempo
desta vez, de bruços, corpo estirado
no parapeito do adro da Mercês de Cima
cabeça apontando oeste
olhos fechados pressionados contra
os antebraços e o rosto escondido
nariz de fora para respirar.

Pensava apenas no amor de sua vida.

Imaginava a cidade na noite escura
mesmo sem olhar nada:
Santa Efigênia
Antônio Dias
Mercês de Baixo
São Francisco de Assis
Praça
Museu
Zênite.
Carmo
Pilar
São Francisco de Paula
lá para os lados onde
acabam os dias
e o Pico ao longe,
Inconfidente ainda vivo,
testemunha de tudo,
camuflado na noite.

(Acervo pessoal)