Um homem que nasceu no “anno da fumaça” diz o valor das barbas no seu tempo e da superioridade do Partido Liberal sobre o Conservador
Passei o dia de hontem – 7 de setembro – entre as quatro paredes duma sala de hotel, na tradicional cidade de Santa Luzia do Rio das Velhas, a 35 kilometros de Bello Horizonte.
O hotel em que me hospedei, o único existente no logar, não está situado propriamente na cidade: fica-lhe distante tres kilometros e à beira da estação de Rio das Velhas, da Central do Brasil.
Não é que eu preferisse passar ali o “dia maior” dos brasileiros. Não. Não é possível preferir-se, mormente no dia de hontem qualquer cidade, por melhor que seja à Bello Horizonte.
Trabalhos urgentes foram a causa de minha permanencia em Rio das Velhas.
Aproveitei bem o dia: trabalhei e aprendi alguma coisa de historia antiga, que os livros não dão à publicidade.
A proprietaria do hotel é uma distincta senhora, viuva que móra em companhia de seu respeitavel pae, sr. Vicente Gonçalves Chaves. É um velho de poucas falas. Suas longas barbas brancas dão-lhe perfeita semelhança com d. Pedro II; e a sua sizudez demonstra a severidade de seu caracter.
Vi logo que minha approximação desse homem seria proveitosa, porque iria conhecer, como de facto conheci, episodios interessantes do seu tempo e da sua gente.
Eduquei meu espirito, já de naturesa observador, nas lides de imprensa, de maneira que não perco opportunidades, como essa, de fazer uma reportagem sobre assumpto politico-social.
Sem perda de tempo, puxei minha cadeira para junto da do sr. Vicente Gonçalves Chaves e lhe perguntei:
–O senhor tem alguns 70 annos?
–Tenho mais alguma coisa, porque nasci no “anno da fumaça”, em 1833. Como vê, tenho 89 annos feitos e quasi a entrar na casa dos 90.
Respondi-lhe, então, gracejando:
–Se fosse a uma senhora, eu não me atreveria a fazer pergunta tão indiscreta... As senhoras não gostam desse assumpto.
–Qual! Hoje é que a gente vê dessas bobagens. As moças do meu tempo não negavam edade... e se casavam.
–No seu tempo, as coisas eram bem differentes...
–Não tem comparação. Até a natureza mudou. Antigamente havia mais regularidade no clima: os Ipés, quando chegavam a se cobrirem de flores, a chuva não tardava. Hoje, os Ipés desacorçôam ter flores, e a chuva não cáe.
–Por que se chamou “anno da fumaça” o de 1833?
–Foi porque o mundo ficou todo embaçado. Houve uma fumaça que não deixava ver a distância de dois metros. Durou dias. Meu pae é que me contou isso. Esse phenomeno eu não vi. O que vi muito foi a barba valer como documento. E valia muito mais do que os documentos de hoje, sellados de cima a baixo, testemunhados e registrados nos cartorios, e, assim mesmo... na hora do “compromisso”, foge tudo: foge o homem que assignou, as testemunhas; e, o papel, às vezes, fica sem valor, só porque faltou uma palavra.
No meu tempo era assim: eu precisava – uma comparação – de 100$; escrevia um bilhete à essa pessoa que tinha o dinheiro, nestes termos: “F. manda, pelo portador, a quantia de 100$, que pagarei no dia tanto.”
Dentro do bilhete ia um pequeno pedaço da minha barba, que eu cortava na hora.
Isso era sagrado.
No dia do pagamento eu ia levar o dinheiro e trazia o pedaço da barba.
Esse tempo já passou. Quasi todos usavam barba. Eu nunca puz a navalha na cara.
–E as amizades eram firmes?
–Ah! firmeza de tudo era no meu tempo. O povo de Santa Luzia era valente mesmo: não aturava desaforos. Por qualquer coisa mettiam o porrete.
Basta dizer que o povo batia a força do governo. Na “Revolução de 42” foi bonito mesmo. Teve uma hora que o povo de Santa Luzia quasi bateu a força de Caxias.
–O senhor se lembra da Revolução de 42?
–Como não? Eu fabricava munição para as espingardas de pedra. Essas armas matavam que era um horror. E não falhavam. Era fogo ali, na certa.
Meu pae estava da côr de seu casaco (apontando para o meu paletot côr de terra) e tinha lama até nos joelhos, de tanto combater com a força legal. Eu me lembro disso como se fosse hoje. Tenho a “idéia” muito boa.
No combate decisivo, meu pae foi preso, e muitos companheiros delle fugiram. Uns cairam no rio e atravessaram a nado; outros passaram mesmo na ponte grande.
–O Partido Liberal era forte?
–Muito mais forte do que o Conservador.
Aqui em Santa Luzia, o Partido Liberal sempre bateu o Conservador. Não ganhou uma eleição.
O povo do Liberal era um povo resolvido. Na Lagôa Santa, hoje districto deste município de Rio das Velhas, uns poucos liberaes não deixaram a força do governo entrar. Nessa occasião foi baleado na perna o barão de Sabará.
–No seu tempo havia mais respeito aos homens públicos?
–Ah! respeito era no meu tempo. Quando o imperador passava, todos tiravam o chapéo. Uma vez, elle jantou ali, naquela casa (e apontou para uma casa vizinha), para embarcar num vapor, no rio das Velhas. Ia em visita ao Recolhimento Macahubas, aqui pertinho.
Tinha povo nas ruas como cascalho. Todos acompanharam d. Pedro II até à beira do rio.
–O senhor tem acompanhado essa ultima campanha em torno da successão presidencial?
–Tenho sim. É uma vergonha. Não respeitam nem a vida particular. Nunca vi tanto horror. Tanta diffamação ainda não vi.
Na Monarchia não havia disso. Por essas e outras é que sou monarchista.
–O senhor é monarchista?
–Sim, sou monarchista de coração. Só sou republicano em obediencia às leis.
Nesse momento o sr. Vicente levanta-se e vae ao seu quarto, e de lá me traz um retrato de d. Pedro II. Exaltado, exclama: “Esse é que era homem: caridade e bondade está aqui (apontando para o retrato). Educou muita gente, protegeu muito moço pobre para fazer carreira. D. Pedro era tão bom – continuou o sr. Vicente – que não quis receber os cinco mil contos que o governo provisorio lhe offereceu, dizendo que o Brasil era ainda pobre e não estava em “circumstancias” de dar. Você deve saber ainda que d. Pedro II levou um travesseiro de terra do Brasil, para deitar a cabeça, depois de morto. Isso é que é bondade. A minha opinião é que os ossos delle não deviam vir para o Brasil.
–Por que?
–Pois você me toca com o pé de sua casa, e eu ainda volto?
–Pelo que estou a ouvir, o senhor não vae bem com os republicanos...
–Não, não é isso. Com alguns, é verdade que não vou bem; mas ha outros que aprecio.
Teve palavras de elogio a alguns vultos da actualidade e do governo. “São tacos de homem”, disse.
Estranhei a expressão “tacos de homem”... Elle explicou: “Assim se diz que elles são quando se mostram fortes e decididos. Como ...”
E referiu os nomes que admira e aprecia. Seus elogios, aliás, são de valor, porque é elle um monarchista independente, caracter de velha tempera, sem desejos nem ambições presentes para elle nem para os seus.
A sua única preoccupação, actualmente, é arrancar das peças de morim que lhe chegam às mãos os retratos de d. Pedro II.
Assim é que já conseguiu uma grande collecção delles.
À cabeceira de sua cama encontra-se um desses retratos, ao lado do da imperatriz.
Dionysio SILVEIRA.
Rio das Velhas (Minas) – 8-setembro-1922.
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