"Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada;
mas quando não desejo contar nada, faço poesia."
Manoel de Barros - Livro Sobre Nada
"O momento em que, hipoteticamente, você sente que está andando nu pela rua, expondo demais o coração, a alma e tudo o que existe lá dentro, mostrando demais de si mesmo. Esse é o momento em que, talvez, você esteja começando a acertar. "
Neil Gaiman - O Discurso "Faça Boa Arte"
"...eso es lo que siento yo en este instante fecundo..."
Violeta Parra - Volver a Los Diecisiete
quinta-feira, 20 de junho de 2013
O Portinari
Minha mãe sempre falava de sua primeira visita à Pampulha no fim dos anos 1940, ainda criança, com seus pais. Falava dos três em frente ao painel de azulejos da Igreja de São Francisco e de meus avós admirados com o arrojo da arquitetura de Niemeyer e com a ousadia das pinturas de Portinari
Ela, do alto de sua infância não entendia como figuras tão deformadas e assustadoras poderiam ser bonitas.
Passei a vida inteira ouvindo essas e outras histórias sempre ligadas ao interesse de meus avós por arte e cultura e de como transmitiam tal interesse para os filhos. Posteriormente vieram outras histórias contadas por ela sobre o tio e o irmão, ambos arquitetos.
Todo esse fabulário contribuiu muito para o caminho profissional que escolhi.
Agosto de 2011:
A escola, neste ano, desenvolvia seu currículo apoiando-se nas obras dos maiores expoentes da arte brasileira, entre eles Cândido Portinari, Alfredo Volpi, Tarsila do Amaral e outros.
Os assuntos, no caminho de volta para casa ou à noite na resenha familiar eram sempre sobre eles:
-Papai, você sabia que o Portinari morreu por causa do cheiro das tintas que ele usava?
Ou então:
-Papai, você sabia que o Volpi pintava um monte de bandeirolas coloridas?
E ainda:
-Papai, você sabia que a Tarsila do Amaral pintou uma mulher que tinha uma perna enooooorme?
E finalmente:
-Papai, eu quero ser pintora!
O pai, entusiasmado, disparou:
-Filhota, no próximo fim de semana vamos à Pampulha para ver os desenhos e pinturas na igrejinha, combinado?
E em meio a beijos e mimos firmaram compromisso inadiável para dali a poucos dias.
Na verdade passaram-se vários fins de semana quando finalmente houve o passeio e lá se foram pai, mãe, filha e avó para ver e rever o conjunto da Pampulha.
No início ela não deu muita importância para a igrejinha. As mil bicicletas, as pessoas fotografando, as crianças brincando na pracinha, os sons do parque de diversão e os vendedores ambulantes pareciam muito mais mais interessantes e atraentes, quando de repente deparou-se com o enorme painel de azulejos bem na sua frente.
Arregalou os olhos e reconheceu imediatamente as figuras que viu na escola. Falou aos berros dos peixes, do Santo, do cachorro que parecia lobo, das aves, das linhas curvas. Achou a coisa mais bacana do universo a assinatura do artista bem no cantinho da obra: "C. Portinari".
Aprendeu lá, na hora, que tudo aquilo se relacionava: os azulejos, as curvas da igreja, as curvas da pintura, as curvas da lagoa, as curvas dos canteiros e que tudo aquilo era muito importante para a cidade, para o país, para o mundo.
-Nossa papai, eu vou ser pintora! Vamos entrar logo papai, vamos?
Entraram e foi como se chegassem a outro mundo, a uma outra dimensão, inundada por luz, música de fundo e arte.
Só estavam os dois e o tempo ficou outro (Einstein explica).
A primeira e mais longa parada foi de mãos dadas com o pai em frente ao majestoso afresco do altar: infindáveis 40 ou 50 segundos de admiração, o que é uma eternidade para criança de 5 anos.
Observou e comentou tudo: o Santo que parecia um gigante enrugado, um outro cachorro, as formas geométricas mescladas com pessoas, a assinatura do Portinari e, no final, falou que estava com medo.
Era muito impactante.
Soltou da mão e foi ver os quadros da Via Sacra. Um por um. Perguntou se contavam alguma história e escutou-a.
Correu para o batistério e rolou o corpo pelos bronzes do Ceschiatti. Fez pique-esconde...
Olhou para cima e falou que o teto parecia chão de casa antiga.
Olhou para baixo e viu lagoa entrando na nave nas curvas desenhadas no piso.
Olhou para fora e perguntou por que não conseguia ouvir as pessoas do lado de lá dos vidros.
Até que saíram.
A menina, animadíssima, correu para contar à mãe e à avó o que tinha visto lá dentro. Colaram as três o rosto no vidro e ouviram dela todo o relato.
No final a avó (a criança lá do primeiro parágrafo) pergunta:
-Então quer dizer que você gostou de tudo que viu hoje?
E a menina responde, olhando para baixo, riscando o chão com a ponta do pé:
-Só não gostei de uma coisa: é que eu acho que o Portinari pinta melhor do que eu...
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